O que as instituições podem aprender com as comunidades?

Há quatro anos que estou rodando o Brasil em uma pesquisa independente sobre colaboração e outros aprendizados comunitários. Quando comecei a itinerar, não sabia ao certo o que estava procurando; simplesmente sabia que queria conhecer outras realidades além das minhas bolhas. O que me fez querer aprofundar em vivências para além da minha realidade foi a convivência de nove anos em uma comunidade dita vulnerável. Onde as pessoas diziam existir vulnerabilidade, eu só enxergava potencialidades. Portanto, quis aprender com essas outras realidades.  

Nessa comunidade em que passei nove anos, antes de iniciar a itinerância, conheci a Santa Iris em uma oficina de empreendedorismo social que eu estava me arriscando a ministrar. Aprendi muito mais do que ensinei; foram trocas potentes que transformaram a minha vida. O intuito deste texto é compartilhar alguns aprendizados que tive com a Santa Iris e com a Cida, que conheci um pouco depois, enquanto elas construíam as primeiras edições da Feira do Bem.

Para mim, a Feira do Bem é um projeto inspirador, uma feira de rua que converge as potencialidades da comunidade, que rompe barreiras sociais e estabelece uma rede de apoio, onde famílias se ajudam e se impulsionam mutuamente. É um espaço de aprimoramento coletivo e de construção de curas. Cura para uma sociedade segmentada, onde a mulher é desvalorizada, o pobre é colocado à margem, e as pessoas vivem deprimidas em seus mundos individualizados, pautados no lucro e imersos em uma crise de desconfiança.

Mas bem vamos para alguns fatos que eu considero ser fontes de aprendizagem para as nossas instiuições, para o nosso modo de ver e viver. Pelo menos, esses fatos foram marcantes para mim a ponto de desejar compartilhar:

 Ampliando e questionando às margens:

A Feira do Bem, quando realizada na rua, é estrategicamente situada na via que divide a área mais rica do bairro da comunidade mais pobre. Esse posicionamento visa promover a interação entre esses dois mundos distintos, criando um espaço onde diferentes realidades sociais podem se encontrar e se conectar. A intenção é fomentar um diálogo e um entendimento mútuo entre as partes, desafiando as barreiras sociais e encorajando as relações e o apoio entre todos os envolvidos.

Como se monta infraestrutura se não se tem muito dinheiro?

Colaborando e compartilhando espaços: as barracas da feira podem ser divididas, por exemplo, uma barraca de comida pode iniciar a feira com comidas salgadas e depois finalizar com doces, e assim os custos podem ser rateados entre mais pessoas. Além disso, a feira é capaz, dependendo da situação, de financiar a família nas primeiras edições, até que ela tenha condições e capital de giro para arcar com a barraca. Afinal, nas comunidades, uma grande questão é ter o capital inicial para começar um empreendimento e qualquer redução nesse custo pode ser crucial. 

Como articular as redes?

A articulação de rede é essencial para garantir a sustentabilidade e a organização de uma feira. É comum encontrar diversos parceiros envolvidos, como fornecedores de banheiros químicos, barracas, brinquedos e até artistas. Quando todos os detalhes estão alinhados, o evento acontece com sucesso. Mas como alcançar esse nível de coordenação? É fundamental ter uma visão clara do impacto e da importância do projeto e cultivar boas relações com os parceiros. Veja o que Iris e Aparecida compartilharam na entrevista recente sobre como conseguir isso.

Para Iris, a confiança é a base de qualquer projeto bem-sucedido. A confiança é primordial, tanto na relação entre nós e os feirantes e parceiros quanto vice-versa. Sem ela, não há como avançar. Para construí-la é importante: manter prazos, ser transparente, oferecer bastante informação e estar disponível, assim, conseguimos estabelecer essa confiança. A confiança deve ser praticada e não apenas falada

Aparecida complementa, destacando que a confiança deve partir de um lugar de humildade. A confiança começa dentro de nós. Muitas vezes, as pessoas querem ver resultados sem estar dispostas a colocar a mão na massa. É necessário chegar com humildade, escutar as opiniões, e estar disposto a fazer o trabalho.

Para Iris, a confiança é um processo gradual que constrói credibilidade ao longo do tempo. A confiança se instala pouco a pouco.

Cida, por sua vez, ressalta a importância de conhecer e respeitar as habilidades e limitações dos outros. É preciso reconhecer o que cada um traz para a mesa e confiar no trabalho do outro. Não podemos deixar o orgulho crescer; é fundamental ter humildade e acolher os desesperos quando eles surgem.

Ambas enfatizam que o foco deve sempre estar no bem comum. Iris observa que o respeito é outra palavra-chave. Independente de nossas diferenças pessoais, quando nos reunimos, o foco deve estar no bem comum. Aceitar que o outro tem uma vida, uma vivência e uma história diferente é crucial para a nossa colaboração.

O aspecto da comunicação também é vital, como destacado por Aparecida. A comunicação deve ser orientada para resolver questões e não para escutar reclamações. Unimos esforços para construir o bem comum e não para alimentar egos.

Ambas ressaltam que a gratificação vai além do financeiro. Transformar uma ou duas famílias já é um grande feito, diz Iris. Nós vibramos com o crescimento dos outros e acreditamos que a gentileza gera gentileza. O projeto não é apenas sobre nós; é sobre representar e apoiar o coletivo.

Não poderia encerrar a conversa sem perguntar às duas qual é o segredo para manter uma boa relação entre elas. Cida começou dizendo que é essencial se conhecer bem, entender seu próprio temperamento e reconhecer as qualidades de cada um. Ela mencionou: “Eu implico com quem amo e às vezes acabo explodindo. No entanto, a Iris consegue contornar essas situações. Somos que nem arroz e feijão, sou mais de abrir espaços e a Iris é mais da sistematização, do cuidar das relações. Além disso, se a Iris precisar tomar uma decisão e não conseguir me comunicar, eu fico tranquila, porque confio que, naquele momento, ela está fazendo o melhor. Confio plenamente.” Iris completa, “não sei se somos loucas, atrevidas ou o que estamos fazendo nesse mundo. Sei que entrar na vida das pessoas necessita de muito cuidado e que o maior objetivo é trabalhar a autoestima, principalmente das mulheres”.

Enfim, espero que, assim como eu, você também tenha se inspirado e aprendido muito com essas mulheres. Levo comigo muitos desses ensinamentos e aprendizados em minhas itinerâncias comunitárias e na minha vida. Sou muito grata a essas mulheres e, quem sabe, ainda compartilhe novas versões desses ensinamentos no futuro, pois o que apresentei aqui é apenas um pequeno recorte do que aprendo com elas. Ah, e não poderia deixar de mencionar que ambas aceitaram o meu convite para compartilhar essas experiências na comunidade da Plataforma Caleidoscópio. Vamos nos encontrar por lá também, nos misturar e compor outras mandalas do nosso caleidoscópio. 

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